Entrevista na Tribuna Judaica (Joel Rechtman)
Luiz Cuschnir diz que é preciso tolerância e empenho para construir o Shalom Bait
Luiz Cuschnir tem mais de 35 anos de experiência como psiquiatra e psicoterapeuta. Formado pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos, graduado pela Faculdade de Medicina da USP e especializado em psicodrama, ele é percursor no Brasil do Gender Group, que reúne grupos masculinos e femininos em vivências e debates sobre o que é ser homem ou mulher nos dias de hoje, quando há uma mudança de paradigma no papel de cada um dentro da sociedade e da família.
Nesta entrevista especial para a Tribuna Judaica, Cuschnir conta um pouco da sua trajetória pelo psicodrama. Ao falar sobre aproximação de Rosh Hashaná e Yom Kipur, faz uma análise interessante sobre a diferença entre pedir perdão e se arrepender. “Pedir o perdão é caminhar através da dor, aprendendo a conviver com o imperfeito que se é e também aceitar os outros como são”, diz o psiquiatra. “Ao se arrepender, a pessoa recapitula sua vida, tomando uma nova postura frente aos seus próprios erros.” Leia a seguir:
Tribuna Judaica: Muitos judeus influenciaram a psicanálise, o senhor se especializou em psicodrama. Qual foi a importância de J.L Moreno , na sua trajetória profissional?
Luiz Cuschnir: Um pouco antes de me formar em Medicina, já tendo iniciado minha formação como terapeuta psicodramatista, tive a oportunidade de ir para Beacon, em Nova Iorque, no World Center of Psychodrama, Instituto Moreno. A proposta de Moreno é que se viva o psicodrama e não só se estude suas teorias. Vivíamos lá, um grupo de terapeutas de várias partes dos Estados Unidos e do mundo, onde ele, Zerka sua mulher e Jonathan moravam. Com isso, estreitei minha relação com a família, sendo autor da sua autobiografia que aqui no Brasil publiquei e com essa formação me pautei para desenvolver meus trabalhos. Hoje, tanto meus pressupostos técnicos de atuação clínica como o substrato teórico e minha obra literária de 14 livros publicados, têm uma forte influência dessa minha história. Estudar o Moreno para mim é como estar com alguém da minha família. Trabalhar como psicoterapeuta com a sua visão de mundo não me parece tão distante quanto foi a minha vida. Hoje recebo oferecendo coisas para comer as pessoas no meu consultório como ele nos recebia no seu Instituto e na sua casa. A identidade judaica comum aproximou esse constructo da minha vida profissional, entendendo a importância do desenvolvimento saudável do potencial humano.
TJ: Rosh Hashaná e Yom Kipur são épocas propícias para a autoreflexão e para pedir perdão por eventuais erros cometidos. Qual a diferença entre pedir perdão e arrependimento?
LC: Para pedir perdão é preciso rever as expectativas que foram criadas tanto sobre si como com as outras pessoas e aceitar a liberdade que temos de viver a vida, sempre tendo em vista que o ser humano é falível e passível de erros.
Arrepender-se leva a sensações onde o indivíduo recapitula sua vida, tomando uma nova postura frente aos seus próprios erros e aos erros dos outros. Errar não é mais um fracasso somente, mas sim um aprendizado. Pode revisar os capítulos e escrever uma história melhor.
Viver com raiva, ódio e sentimentos de vingança só deteriora a beleza da vida, funcionando como uma venda nos olhos, obscurecendo os sentimentos mais nobres no ser humano de alegria, compaixão e amor. Reavaliar a própria vida e rever erros, enseja mudanças. Isso é o mais importante, perceber o que pode ser modificado para uma vida melhor.
Na reflexão sobre a vida que se leva, pedir o perdão é caminhar através da dor, aprendendo a conviver com o imperfeito que se é e também aceitar os outros como são. Implica em olhar maior, mais distante e mais amplamente a própria vida, tanto em relação ao outro quanto a si mesmo retirando o julgamento que culpabiliza e decreta a responsabilidade pelo erro.
TJ: Seu último livro: “Ainda vale a pena”, fala sobre a manutenção do casamento. Você acredita que alguns ensinamentos da tradição judaica, como shalom bait, podem ajudar na harmonia familiar?
LC: Costumo dizer que ao invés de indicar passos “infalíveis” a serem seguidos nas mais diferentes proposições de um casamento infalível, tento mostrar algo mais a todos, procurando fornecer-lhes ferramentas para que se instrumentalizem – ou percebam a importância de se instrumentalizarem –, para aí, sim, empreenderem suas próprias ações e não se perderem, e nem a seus respectivos amores. Em outras palavras, procuro demonstrar que existem recursos internos, de autoconhecimento e entendimento do que ocorre consigo mesmo, os quais ajudam as pessoas a desenvolver sua autocrítica e a dosar seu egocentrismo, de maneira a analisar a si e aos outros, assim como ao contexto em que vivem. E tudo para que consigam encarar a realidade, conscientes de que ela não é dada, mas construída por cada um, sempre visando à sociedade como um todo.
Meu objetivo com essas colocações é procurar despertar o olhar para a necessidade de não absorver as coisas ao redor como se fossem verdades absolutas. É preciso ter tolerância, disposição e empenho para entender e construir as relações. Não há como apertar botões – e nem teclas mágicas nos nossos artefatos eletrônicos, para usarmos termos mais atuais.
‘Shalom bayit‘ significa completude, plenitude e realização, caracterizando o casamento pela paz, carinho, respeito e bondade, através do qual um casal se torna completo. Esses elementos presentes propiciam a comunicação necessária para que construam um percurso de convívio harmônico dos dois.
Nesse livro falo também do “Bedeken” que indica a retração necessária para que o outro tenha o seu valor, como no casamento e o véu que cobre o rosto da noiva. Falo da história de Yacov com Laban, ao escolher a noiva Rachel e receber Leah. A descoberta de que aquela pessoa idealizada com quem se casa não existe por completo, já que nela vive também uma outra pessoa, repleta de mágoas e tensões não resolvidas – o que é natural do ser humano.
Daí o respeito pelo que o outro é e pode ser no casamento, ser um tema tão primordial na convivência do lar judaico.
TJ: Como você definiria o conceito “Felicidade”? É possível ser totalmente feliz na vida ou a felicidade completa é uma utopia?
LC: Falando de felicidade nos relacionamentos homem/mulher que é minha especialidade como terapeuta, sem trapaças, sem mentiras, sem medo, só assim é possível atingir a plenitude de nosso próprio ser – para assim estarmos realmente prontos para a permuta do amor. Porque o amor é, principalmente e constantemente, deixar florescer a alma e renascer.
Hoje as pessoas publicam fotos produzidas, criam uma realidade falsa e consumista da felicidade, habitam mundos irreais e se mostram muito melhores do que são na realidade.
Quem, afinal, ao começar a amar alguém e viver um pequeno percurso de felicidade e harmonia, não desejou que durasse para sempre? A felicidade dos relacionamentos depende da qualidade dos nossos afetos, depende das escolhas que fazemos, da nossa disposição em nos curar, em nos conhecer e conhecer o outro. Só que ela deve sempre obedecer à nossa natureza e não a preceitos ditados pelos outros.
Terminar um casamento ou um relacionamento que um dia mexeu com a gente e nos fez sonhar a força do amor e a promessa de felicidade eterna é muito frustrante.
Os caminhos que levam à felicidade dos relacionamentos afetivos não são fáceis de serem trilhados, mas podem, sim, ser percorridos com bons resultados e conquistas positivas.
Esse percurso possível é a felicidade que se pode almejar a cada momento da vida.
TJ