O Dilema Masculino

Veja

Um psiquiatra paulista afirma que, depois da revolução que as mulheres fizeram, os homens precisam rever o seu papel na sociedade.

O psiquiatra paulista Luiz Cuschnir, 41 anos, é um mestre num desses assuntos que, além de originais, invariavelmente dividem as opiniões das pessoas. Professor-supervisor de Psicodrama do Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clinicas, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, dedica-se ao estudo das transformações causadas pelo novo papel da mulher na sociedade e ao fato de ela progressivamente ocupar espaços que antes eram exclusivos do homem. Cuschnir está convencido de que vivemos um momento de indefinições e conflitos, E, na sua opinião, esses problemas afetam principalmente o homem.

Ele passa por uma grande crise de identidade e tenta descobrir como – e o que é – ser homem“, diz Cuschnir.

O assunto começou a interessá-lo, sobretudo, de dois anos para cá, quando participou de um congresso na Holanda, junto com os mais importantes especialistas em psicodrama de todo o mundo – e onde praticamente não se falou de outra coisa . Para Cuschnir, o homem se encontra em parafuso. Sente-se insatisfeito com os modelos de masculinidade que foram estabelecidos ao longo das gerações – mas ainda não sabe o que colocar no lugar daquilo que não serve mais. A crise afeta sua relação familiar, com a mulher, com os filhos e sua educação. Cuschnir tem ajudado muitos homens em crise através do psicodrama – a linha da psicoterapia que usa a dramatização como técnica de expressão – a se redescobrirem como pessoas. Ele conhece intimamente o que significam as conquistas femininas. Em sua casa, quem comanda as finanças é a mulher, Sumi, uma psicóloga. Como pai , acompanha de perto a educação de seu filho André, de 9 anos, e da filha Adriana de 5 anos, e participa das tarefas domésticas, como arrumar as camas e lavar os pratos. Nas horas vagas, porém, Cuschnir prefere pintar telas claramente inspiradas em Van Gogh, com as quais decorou as paredes de seu consultório, onde recebeu VEJA para a seguinte entrevista:

Veja: Em sua clínica o senhor tem observado uma crescente angústia do homem diante do avanço da mulher na sociedade. Como isso se manifesta na convivência dos casais brasileiros?

Cuschnir: Todos sabemos que o homem perdeu poder dentro da família e a mulher conquistou espaço. Para o homem, no entanto, foi muito mais difícil aceitar a condição de ex-chefe da casa. O homem arcava com o sustento da família e isso lhe dava segurança, poder. Agora que perdeu o domínio econômico, sente-se diminuído, humilhado. é por isso que ele enfrenta hoje uma grande crise de identidade. O homem das grandes cidades, o homem bem informado que quer viver com intensidade as conquistas comportamentais de sua época, vive atolado em dúvidas sobre sua condição. E se caracteriza justamente por ser uma criatura em busca de uma resposta para essa pergunta. Depois que as mulheres começaram a ocupar espaços que pertenciam a ele, a desempenhar funções tidas como masculinas, o homem passou a se inquietar na busca de ocupar seu novo espaço na sociedade.

Veja: Nos dezoito anos de estudos nessa área o senhor pode agora ter uma visão em profundidade da questão comportamental no Brasil. Em que a mulher se diferenciou do homem nesse processo?

Cuschnir: Eu diria que ela avançou muito mais do que o homem no terreno das indagações fundamentais. Desde a geração passada, a mulher vem lutando para não ficar limitada aos papéis de dona de casa, de mãe, de objeto sexual. Esse movimento, que ganhou o nome de feminismo, trouxe inquietações que ajudaram a mulher a definir melhor sua identidade feminina. Nesse aspecto, sim, as mulheres estão mais evoluídas que os homens.

Veja: Por que os homens estariam tão atrasados?

Cuschnir: Porque ainda não venceram seus preconceitos, algo que as mulheres fizeram há duas décadas, logo no começo do movimento feminista.

Veja: Que preconceitos são esses?

Cuschnir: O primeiro – e o maior deles – é não admitir a existência de dúvidas. Muitos homens se recusam a discutir esse tema porque têm medo de que as pessoas pensem que eles estão inseguros de sua masculinidade. Não é nada disso. A pergunta não é se o homem é homem, mas como ser homem. As mulheres já passaram dessa fase.

Veja: A mulher teve alguma vantagem porque superou esses preconceitos antes do homem?

Cuschnir: Sim, pois conquistou muito mais espaço, que usou sobretudo para discutir a sua condição. Hoje existem milhares de livros que tratam de feminismo, maternidade, do papel da mulher na sociedade. A mulher discutiu exaustivamente essas questões. Desceu a detalhes como debater exaustivamente se devia ou não usar soutien. Assim, conquistou lagares no mercado de trabalho, abandonou uma posição de passividade e já se encontra até numa fase de revisão de conceitos. Comparado com ela o homem ainda nem começou a engatinhar.

Veja: E o que ele tem a ganhar se fizer o mesmo?

Cuschnir: Descobrirá que, apesar de tudo há uma multiplicidade de papéis que pode desempenhar em casa e na sociedade. Da mesma maneira que a mulher se enriqueceu, como pessoa, ao deixar de ser apenas doméstica para se dedicar também ao lado profissional, o homem pode descobrir novos potencias em funções que antes eram exclusivas da mulher. Nos grupos de psicoterapia que dirijo encontro muitos homens inteligentes bem –sucedidos nas suas profissões, mas que se acham incapazes de preparar um simples jantar. A verdade é que hoje o homem depende muito mais da mulher do que o contrário.

Veja: O senhor afirma que o homem brasileiro atrasou-se na formação de uma identidade tão forte quanto a que a mulher conseguiu forma. Isso pode influir na educação dos filhos?

Cuschnir: Essa parece ser a sua maior angústia. Refiro-me a homens de 30 a 50 anos, cujos pais tinham papéis masculinos muito bem definidos, que nunca viram o pai lavando pratos na cozinha, mas olham hoje pata os seus filhos e os enxergam usando brinco na orelha, rabo de cavalo no cabelo – e simplesmente não sabem o que lhes dizer. é uma mudança de valores muito grande. Eles sabem que aqueles modelos que seus pais mostraram não servem mais, mas também não sabem o que colocar no lugar. Essa situação é ainda mais difícil porque a tarefa de educar os filhos sempre foi da mãe e só agora os homens começam a participar dela.

Veja: Os adolescentes de hoje correm o risco de construir uma identidade ainda mais frágil do que q de seus pais?

Cuschnir: Felizmente, a sociedade está mudando para melhor a casa ano. Antigamente, as escolas chamavam só a mãe para as reuniões, mas hoje também convidam o pai e há casos de escolas que, em determinadas situações, chamam só o pai. Há mudanças significativas, mas de assimilação lenta pela sociedade. A licença-paternidade, por exemplo, gerou muitos protestos quando foi aprovada e até hoje muitos pais não sabem o que fazer naqueles dias reservados para o convívio com o recém-nascido. Por outro lado, já existe uma vanguarda masculina que arrumou coragem para levantar a discussão sobre o que é ser homem, nos dias de hoje. Acredito que os jovens atuais sofrerão menos com esses problemas.

Veja: As mudanças na estrutura da família e as dificuldades do mundo moderno têm feito muitos casais optarem pelo filho único. Nossos avós acreditavam que a família feliz deveria ser numerosa. Esse conceito Também mudou?

Cuschnir: Quando se têm irmãos, formam-se vínculos em que não há protetores e protegidos, doadores e receptores, como ocorre na relação entre pai e filho. A esses vínculos entre irmãos os especialistas dão o nome de simétricos. São os mesmos que caracterizam o relacionamento entre amigos ou primos, por exemplo. Constituir vínculos simétricos é essencial para que a pessoa cresça e aprenda a se relacionar com os outros. Nas grandes cidades, em que faltam espaços para as crianças se encontrarem, a escola pode ser uma saída. O que vale esmo é entender que o convívio com várias pessoas diferentes, em ambientes diferentes, é bom para todos os filhos, mas no caso do filho único isso é preponderante para evitar que ele seja emocionalmente sobrecarregado pelas expectativas que os pais depositam em seus ombros.

Veja: Isso significa que os pais devem encher os filhos de atividades, para que eles não fiquem sozinhos em casa?

Cuschnir: De jeito nenhum. Crianças com agenda de executivo, que fazem judô, inglês, natação, música, balé, podem entrar na vida adulta tão superexigidas que nunca conseguem descansar e encontrar prazer no descanso. Tornam-se adultos que não aprendem a “não fazer nada”. Adultos que nunca conseguem relaxar, que são propensos a se agarrar a coisas que induzam artificialmente ao prazer, como o álcool e as drogas.

Veja: E se o homem continuasse a obedecer ao modelo que lhe ensinaram?

Cuschnir: Isso seria impossível, porque a emancipação da mulher é irreversível. O homem não tem a menor chance de continuar a viver como antigamente. Ele tem que se acostumar com a idéia de que perdeu o poder único, em casa e na sociedade. A sabedoria não está em descobrir fórmulas que revertam a situação atual, que restaurem a hegemonia perdida. A melhor saída é aprender a dividir o poder com a mulher, sob pena de o homem não conseguir encontrar um papel para si, em casa e na sociedade.

Veja: Muitas mulheres se dedicam demais à profissão porque acreditam que têm de trabalhar o dobro do que o homem trabalhar para demonstrar a sua capacidade. Esse não seria apenas um truque para elas se valorizarem ainda mais?

Cuschnir: Noto que a mulher realmente tem de trabalhar num nível superior ao do homem para se sentir valorizada. Isso acontece por dois motivos. O primeiro é que existe uma certa dúvida, da parte das empresas, se ela vai dar conta do trabalho. A sobrecarga funciona como um teste constante para que a mulher possa ser aceita no mundo que os homens julgam ser seu. O outro motivo é que as mulheres adoram ser exigidas, adoram mostrar que dão conta de tudo, que são tão eficientes com os homens. Mesmo as mulheres que só cuidam da casa gostam de mostrar que lavam, passam e cozinham com perfeição. As mulheres gostam de esbanjar eficiência e vitalidade.

Veja: Por onde deve começar a faxina?

Cuschnir: O primeiro passo é conseguir superar o preconceito machista de que homem que é homem está imune às crises emocionais. Os homens foram treinados a demonstrar força, acima de qualquer coisa. quem nunca viu um pai dizer ao filho que “menino não chora”? A maior queixa dos homens que já se arriscaram a fazer um autoquestionamento é que o pai só lhe ensinou a trabalhar com assuntos concretos: sexo, esporte, profissão política, . Conversar sobre emoções, ou mesmo demonstrá-las, sempre foi considerado um sinal de fraqueza feminina. Acontece que ninguém, deixa de sofrer por decreto. O sujeito finge que está inteiro, mas por dentro ele está aos pedaços. E, ainda por cima, ensinaram-lhe que ele deveria fingir não só perante as mulheres, mas diante de outros homens também. Reconhecer o sentimento de dor é o primeiro passo para a libertação desse colete de força ideológica.

Veja: Mas a sabedoria popular diz que as mulheres preferem os homens durões e poderosos…

Cuschnir: Para um relacionamento mais profundo, não. Se o homem for muito poderoso – e mais nada além de ocupar a presidência de uma empresa 24 horas por dia -, as chances de ele agradar verdadeiramente uma mulher são mínimas. O homem que imaginar que vai conquistar mulheres galgando posições de poder pode tirar o cavalo da chuva. Infelizmente, a maioria dos homens pensa que a mulher quer um super-homem para se apaixonar e faz de tudo para conquistar poder e sublimar emoções. Na verdade, a mulher de hoje é muito mal-amada porque o que ela quer é apenas que o companheiro demonstre que sente amor por ela.

Veja: Disfarçar as emoções pode ser causa do naufrágio de um casamento?

Cuschnir: Eu diria que é a causa mais freqüente, no caso de companheiros que desfizeram seus relacionamentos amorosos porque foram incapazes de demonstrar na prática os seus sentimentos de amor. Aquele colete de força ideológico que me referi impede que os dois sobretudo o homem – possam se entregar sem receio de parecer vulnerável diante da pessoa amada. Resultado: ambos se fecham nos seus mundinhos, os diálogos fixam cada vez menos freqüentes, os desejos ficam frustrados, o desinteresse mútuo se estabelece. E o Tédio.

Veja: Qual a receita para se evitar o tédio?

Cuschnir: Para duas pessoas que se dispuseram a viver juntas, é muito difícil evitá-lo completamente, mas o casal verdadeiramente interessado em preservar a relação deve perceber que o tédio é o primeiro sintoma de que as coisas estão paradas, de que a troca emocional está perdendo o vigor. Muita gente se desanima diante desse problema, imaginado que o tédio é uma coisa incontornável, intrínseca ao casamento. Não é. Tanto que casais muito novos já reclamam da rotina, enquanto há velhinhos que se sentem satisfeitos com o sues companheiros. O tédio pode perfeitamente ser superado, mas para isso é necessário que, além da demonstração de sentimentos, se deixe o outro livre para se realizar como indivíduo, para buscar coisas novas.

Veja: é o tédio que leva o homem ao a mulher a ter um caso fora de casa?

Cuschnir: Pode ser uma causa, mas não a única. Muitas vezes, o homem vai procurar amantes para resolver fora de casa um vácuo emocional que o casamento não está conseguindo preencher. Com a amante não há vínculos explícitos de compromisso afetivo, como acontece no casamento, e ele se sente mais a vontade para demonstrar sentimentos que tem medo de expressar em casa. Em outros casos, o casamento é para ele um compromisso tão difícil que procura a outra apenas para se sentir mais livre. Com a mulher não é muito diferente.

Veja: Porque a mulher de hoje trai mais que antigamente?

Cuschnir: E que a sua presença no ambiente de trabalho aumentou a probabilidade de que ocorram traições. Em primeiro lugar, porque se multiplicam as possibilidades de a mulher encontrar outros homens interessantes. Além disso, o mundo se cada um dos cônjuges também se amplia. Não é mais somente o homem que traz informações e valores novos para dentro de casa.

Veja: Como o homem e a mulher devem enfrentar o pesadelo da traição?

Cuschnir: Nem sempre a traição significam que o amor acabou. Na maioria dos casos, a traição é só uma válvula de escape, uma demonstração de que aquele casamento precisa ser reestruturado. Superar a traição e refazer o casamento é uma maneira de erguer vínculos afetivos mais fortes do que o que se tinha anteriormente, jogar fora o que estava errado e explicar o que se quer da relação a dois. é um caminho doloroso, sem dúvida, mas pode valer a pena. O problema é que a pessoa traída está tão machucada que não consegue enxergar nada de positivo numa situação que lhe chega de uma forma tão drástica.

Veja: O que fazer com os filhos quando a separação é inevitável?

Cuschnir: A sociedade gosta de culpar os pais que se separam, mas poucos se dão conta de que o pai de fim de semana pode existir tanto no casado como no descasado. O pai que se deixa engolir pelo trabalho a ponto de abandonar emocionalmente os filhos, por exemplo, pode até prejudicar mais a criança do que o pai que mora em outra casa, mas que dá atenção, telefona sempre, leva o filho para passear, almoçar fora, conversar, enfim que está verdadeiramente disponível para o filho durante as horas em que se propõe a isso. O pai que come e dorme todos os dias em casa, mas está sempre com a cabeça em outro lugar, não tem nenhuma vantagem sobre o pai que se descasou.

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