Folha de São Paulo – janeiro/2002
A chamada crise da masculinidade, antes restrita à intimidade de cada homem, tornou-se pública nos últimos dez anos. Dezenas de estudos de antropólogos, sociólogos e psiquiatras chamaram a atenção para a condição de inferioridade do sexo masculino.
Esses textos têm como referência conquistas feministas e avanços da ciência, como a reprodução “in vitro”.
Os pesquisadores concluíram que o homem contemporâneo está mais deprimido, acuado e sem identidade social em comparação com seus antepassados.
Cada vez mais presentes em todos os campos do cotidiano produtivo, as mulheres hoje não precisam dos homens para funções primordiais como procriação, sustento e proteção.
“No mundo todo, a crise masculina continua em curso”, diz o psicólogo e professor da USP Ailton Amélio da Silva, autor de “O Mapa do Amor” (ed. Gente).
“As mulheres estavam em papel desconfortável e reverteram o prejuízo. Mas os homens estão enrascados. Recebem críticas de todos os lados. Se agem energicamente, são taxados de machistas. Se cedem, sentem-se frágeis. é um dilema”, afirma o psicólogo.
As críticas vêm das mulheres, que hoje representam tanto o problema quanto a solução para o drama masculino.
Problema porque foram elas que passaram a realizar muitas das atividades antes restritas ao sexo oposto. Solução porque são também elas que, segundo os pesquisadores, lidam melhor com os afetos e as emoções, ponto fraco dos homens. Sem elas, a situação masculina piora. Estudos indicam que os homens não podem prescindir de relacionamentos amorosos.
A solidão é inimiga da saúde. Homens adultos sofrem mais de doenças psicossomáticas, por exemplo.
“Entre esses, a maioria absoluta é composta por solteiros, viúvos e descasados”, afirma o psiquiatra do Hospital das Clínicas (SP) Luiz Cuschnir, co-autor, com Elyseu Mardegan, de “Homens e Suas Máscaras” (ed. Campus).
As estatísticas internacionais fornecem indicadores cruéis. De cada 4 dependentes químicos (de álcool, de drogas ou de medicamentos), 3 são homens. As drogas sedam o sofrimento psíquico, mas nem sempre evitam suicídios, acidentes de trânsito e crimes.
Análises de estatísticas nacionais (IBGE) e internacionais (ONU) indicam que os homens representam, em média, 90% do contingente carcerário.
Os homens também morrem mais de acidentes de trânsito, de cânceres e de doenças cardiovasculares associadas a estresse e por suicídio.”A maioria dos suicidas eram, ou estavam, solitários”, afirma Cuschnir.
Pressões e falências
Esses números desfavoráveis alimentam uma perspectiva global sombria: homens vivem em média seis anos menos que as mulheres. Por isso os relacionamentos íntimos e de compreensão entre homem e mulher são desejáveis.
“Aqueles que mantêm relacionamentos amorosos estáveis e compartilhados tornam-se mais fortalecidos e capazes de lidar com suas crises”, diz o psiquiatra do HC.
Além de sucesso profissional, as mulheres atingiram um patamar de conforto para escolher e planejar o futuro. Os homens, ao contrário, atrapalham-se no momento de encarar desejos desvinculados de metas e desempenhos, como parar de trabalhar por um tempo para poder repensar a vida ou realizar um projeto pessoal.
Na Europa Ocidental, nos EUA e no Canadá, os homens foram empurrados para uma condição de falência como filhos, como companheiros, como amantes e como pais. A causa, insistem os estudiosos, é a ascensão (econômica, social, política etc.) das mulheres.
Mas não apenas simbolicamente. Segundo os pesquisadores, as mulheres têm imposto, na prática, grande pressão a seus parceiros.
“O homem está mais frustrado que desesperado. Está procurando saídas, mas muitas vezes não percebe que pegou portas erradas, que proporcionam apenas satisfação momentânea, estímulos ao narcisismo e nada mais”, escreveu Luiz Cuschnir em “Masculino: Como Ele se Vê” (ed. Saraiva).
Comunicação difícil
A primeira barreira a ser rompida é a da comunicação. Educados para agir, indivíduos do sexo masculino, de modo geral, têm dificuldade de solicitar, reclamar, intervir, questionar, discutir problemas pessoais e ser enfáticos fora do âmbito profissional.
“Os homens preferem manter um casamento ruim a rompê-lo ou torná-lo mais saudável”, diz Cuschnir, que coordena grupos de terapia de homens e mulheres, separadamente, os chamados Gender Groups (“grupos de gênero”) do HC.
A incomunicabilidade masculina tem origens diversas. Historicamente, o homem é visto como um opressor que causa sofrimentos e ressentimentos à mulher.
“Por isso muitas vezes não dizem a elas o que deveriam dizer por medo de magoá-las e reforçar o mito. E, nas raras vezes em que eles se manifestam, as mulheres lhes dão pouca atenção”, afirma o psiquiatra.
O modo como os homens ouvem também sugere limitações. Como costumam prestar pouca atenção no outro, são menos receptivos a falas sinceras e desarmadas.
“Frente a uma confissão que fuja dos estereótipos da força masculina, eles desconversam, soltam uma piada. Os homens são auto-irônicos, mas raramente dizem “estou com medo” numa roda de amigos”, observa Cushnir.
Novos padrões podem surgir conforme as escolhas
Em vez de condenar os homens por incompetência social, alguns estudiosos propõem uma pauta de reivindicações para eles, como a que as feministas tiveram.
O perfil masculino convencional -centralizador, racional, competitivo etc.- serviu de referência para as reivindicações feministas trinta anos atrás.
O maior desafio do “masculismo” (estudo do homem como um todo) é aperfeiçoar os vínculos afetivos. Mas alguns pesquisadores rejeitam a idéia de que o homem possa incorporar elementos da suposta fragilidade feminina para se feminizar.
“O homem não tem de aprender a ser sensível baseado no perfil padrão da mulher. é preciso aprender consigo mesmo”, diz o psiquiatra Luiz Cuschnir.
A elevação da sensibilidade para os problemas pessoais e dos outros tampouco pode ser atingida por planejamentos rígidos. O cotidiano exige flexibilidade, empatia e empenho.
A obrigação de ser provedor e a corrida pelo sucesso deixaram alguns vácuos nas experiências cotidianas dos homens. Por isso os psiquiatras e os psicoterapeutas, principalmente, têm estimulado os homens a buscar formas alternativas de ocupar o tempo.
“Outro ponto positivo, hoje, é que ficou mais fácil assumir a organização da própria vida. Nunca a satisfação financeira pôde estar tão combinada com o prazer como agora”, afirma Sócrates Nolasco.
Enquanto a mulher aprendeu a reclamar das duplas jornadas, o homem suporta suas cargas calado. Para não se confrontarem com a imagem convencional, eles preferem dizer “não tenho problemas”. A ditadura do desempenho tornou o homem um escravo de si mesmo.
“Eles poderão ser mais felizes quando puderem viver sem a proteção de estereótipos. Mas as mulheres também precisam deixar de lado ressentimentos que, durante séculos, criaram rivalidades entre os dois sexos”, diz Cuschnir.
Há ainda o problema da auto-estima. Nem sempre a crise é do homem.
“Mas eles deviam ir por vontade própria”, adverte Cuschnir.
Anos 80 foram o marco da virada no comportamento masculino
As reestruturações empresariais foram marcantes na década de 80. Milhões de pessoas perderam o emprego e tiveram dificuldade de arranjar outro.
Naquele período, as demissões afetaram principalmente os homens. Passada a turbulência, as empresas voltaram a contratar, mas com exigências que iam além dos currículos. Atributos como flexibilidade, forma física, estabilidade, senso de equipe e pluralidade de experiências tornaram-se decisivos.
“Formou-se, assim, terreno fértil para a consolidação profissional das mulheres na década seguinte, porque elas dispunham desses atributos naturalmente”, afirma o psiquiatra Luiz Cuschnir.
As executivas brasileiras são promovidas mais rapidamente a cargos de confiança que os homens, segundo pesquisa da consultoria Catho.
“E ficam menos tempo desempregadas”, diz Cuschnir.
Uma pesquisa mundial concluída há dez anos derrubou a crença de que mulheres profissionalmente bem-sucedidas alimentam expectativas de igualdade econômica com os homens.
Os norte-americanos Michael Wiederman e Elizabeth Allgeier mostraram que 70,6% das mulheres que recebem salários altos preferem homens melhor remunerados e com mais recursos financeiros que elas.
“Apliquei essa metodologia no Brasil recentemente e obtive o mesmo resultado”, diz Ailton Amélio da Silva, do Instituto de Psicologia da USP