Ieda Santos
Não que as mulheres não precisem ser protegidas. Que o digam os longos anos de dominação masculina só abrandados sob incansável pressão social que vem resgatando sua dignidade. Vitória que as iranianas ainda aguardam e muitas africanas nem sonham. São conquistas, porém, que não alcançaram o equilíbrio, pois a sociedade esqueceu-se de preparar os homens para essa convivência. Resultado: elas cresceram e eles estão querendo avançar, libertar-se dos muitos equívocos relacionados à forma como são educados. Querem humanizar-se e valorizar o afeto. Estão inaugurando o “masculismo”, movimento oposto ao feminismo, através do qual deverão rever e reivindicar valores mais humanos.
Para usufruir melhor de suas conquistas, as mulheres necessitam ter com os homens convivência harmônica. Mas o perfil masculino ainda não está completamente delineado. Estudos a esse respeito datam de 20 anos. Educar meninas cercadas por palavras de afeto e meninos por palavras duras e destrutivas está custando caro.
A violência disseminada entre jovens, sobretudo do sexo masculino, é uma das conseqüências.
“O menino cresce para agüentar e dar pancada, não para aprender a relacionar-se com as pessoas”, diz o psiquiatra Luiz Cuschnir, supervisor do Serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e do Centro de Estudos da Identidade do Homem e da Mulher (Iden). Ele dirige o Gender Group que analisa o comportamento de homens e também de mulheres, separadamente, no HC.
A forma como se educam os homens traça um caminho capaz de cultivar inseguranças embasadas nos sentimentos. Homens lidam muito mal com eles, pois os desconhecem.
“Eles não se entendem e não se sentem entendidos. Portanto, não se protegem das próprias emoções. E, como não se protegem, não sabem como proteger o outro da frustração”, explica Cuschnir. Pioneiro no Brasil na abordagem sobre educação e identidade masculinas, trabalha com o tema desde 1989. O grupo foi criado com objetivos bem definidos: abrir espaço para a reflexão, já que os homens não contam com local onde possam refletir sobre si mesmos. Será?
“Seu espaço, em geral, é comum a outros homens, como os estádios de futebol, onde podem comemorar. Mas não dispõem daqueles onde possam abrir-se com relação à sua identidade.” é paradoxal, mas a liberdade masculina não se mostra tão livre quanto parece. Reivindica brechas por entre as tramas da educação que os contempla com bem menos do que necessitam.
“Foram educados para segurar, resistir e lutar; e não para sentir, falar, expressar-se a partir do que ocorre dentro deles”, emenda o psiquiatra, que decidiu entender o desencontro e promover o encontro entre homens e mulheres. Ele os orienta e descobre novas posturas, que um e outro devem apresentar para alcançar a convivência pacífica.
Para Cuschnir, dizer que “homem não chora” é apenas uma bandeira que esconde outros deslizes sociais. “Os homens também não podem rir ou divertir-se livremente”, afirma e acrescenta: “A educação masculina define o perfil do agüenta, não se mostra”. Comemorar algo externo a ele, como jogos de futebol, permite-se. Mas se a comemoração for pessoal, como a promoção no trabalho ou no estudo, deve ser cercada por certos limites.
Quando adolescentes, ainda se liberam, apoiados por suas turmas, mas vão se fechando à medida que entram na fase adulta. A melhor palavra encontrada pelo psiquiatra para definir o endurecimento do homem nessa fase da vida foi “contêiner”. Cuschnir descreveu tal condição no livro “Homem Adolescente”.
“A parte adolescente tem colorido forte e indica que existe a possibilidade de vivenciar com mais liberdade suas experiências. Já a outra parte (adulta) mostra o contêiner com pedacinho quebrado, através do qual aparece o colorido no seu interior.” O autor quer demonstrar que o lado masculino sensível existe mas não aparece, encoberto pelo homem que não consegue vivenciá-lo. No livro, o adolescente olha o adulto que será e, este, o adolescente que foi um dia.
Contenção e violência
Tanta contenção pode resultar em comportamento violento, apesar de a violência ter origem em várias causas. Segundo o médico, toda agressão se manifesta em função de a pessoa ter sido agredida anteriormente. “Trata-se da resposta nascida da dificuldade em lidar com a agressividade, que vai ocorrendo ao longo de sua vida.”
Aparentemente, o homem desenvolve a agressão e a devolve ou contém, nunca a elabora ou compreende. Muitas vezes, isso ocorre no momento em que ele ainda não conta com mecanismos capazes de contê-la, como na adolescência. “Nesse caso, a violência se expressa com mais intensidade e, por não ter ainda a estrutura de personalidade formada, o jovem não consegue parar e segue para a fase adulta levando-a consigo”, observa Luiz Cuschnir. A maioria das pessoas que matam são homens jovens, que matam seus iguais.
Em geral, conseguem livrar-se da violência rapazes que apresentam mais maturidade. Estes “seguram” a violência mas, se ela não tiver sido compreendida para ser elaborada, vai vazar em outro momento, de outra forma.
Homens maduros, integrados, com clara noção de si mesmos e das mulheres, também trafegam com mais liberdade no seu campo.
“Por trás de tudo está a dificuldade de o homem se colocar numa relação com a mulher e com ela dividir responsabilidades”, reforça o psiquiatra. Ensinado a tudo resistir, segurar e manter o papel de provedor, agrega às suas obrigações a possibilidade de dar suporte emocional à mulher, o que nem sempre consegue. Ele acaba “engolindo” e assumindo muita coisa, pois está habituado a isso.
Muitas vezes educados com visão ruim do próprio pai os meninos, quando adultos, verão o retorno desse tratamento em si mesmos. Por isso são tão sensíveis às lágrimas. “Uma mulher chorando aciona seu perfil perverso – parecido com o do pai – que o bloqueia”, esclarece Cuschnir. Alguns conseguem transpor isso, mas a maioria convive com a delimitação do espaço a ele destinado.
“às vezes, fica afetado pelo jeito como a mulher se expressa ou cobra coisas dele, sem conseguir pôr limites em suas atitudes.” Num determinado momento, parte para a agressão – mais ou menos violenta – ou para o abandono.
O trabalho com grupos de ambos os sexos oferece a possibilidade de enxergar um lado e outro. Segundo o médico, a mulher não percebe o número de vezes em que o agride, pois ele não dá sinais. O nível de agressão pode ser muito pequeno – do grito, passando pela agressão física e terminando no silêncio, no desprezo, na falta de valorização. Os homens também se sentem desvalorizados e se separam por causa disso. Só não contam a ninguém. “é o que vai minando a auto-estima masculina, contaminando a relação e, num determinado momento, ele transforma-se em violento ou abandonador “, diz o psiquiatra.
Mulheres despreparadas
Não podia ser de outro modo. Mulheres e homens estão despreparados para lidar com a identidade masculina. O primeiro grupo de estudos foi divulgado através do Iden, trazido por Cuschnir de congresso realizado na Holanda. Tal qual o feminismo, o masculismo também enfrentou preconceitos. “A princípio, mesmo dentro da comunidade acadêmica, estudos sobre a identidade masculina eram vistos como coisa de gay.” Cuschnir informa ter ouvido, várias vezes, de alguns profissionais que “para ser homem não é preciso fazer curso”.
Ele insistiu. Trabalha com adolescentes há quase 30 anos e também foi pioneiro em destacar a importância do pai em reuniões de escola e naquelas realizadas no HC. “Os canais de comunicação entre pais e filhos, nos primeiros atendimentos em 1974, eram uma catástrofe”, diz, mas acredita que vêm melhorando.
As mudanças ocorreram a partir de um referencial psicodramático, longe do psicanalítico, que trabalha a parte intelectual e verbal. “Tentou-se estabelecer correlação com o afetivo, oferecendo a possibilidade de fazer o homem vivenciar emoções, colocando nelas cenas de sua vida”, resume o psiquiatra. Os grupos reúnem entre dez e doze pessoas por vez e, em workshops, cerca de 30 homens e mulheres unidos, ao final, num único contexto. “A finalidade do trabalho não é o confronto, mas o encontro.”
Cuschnir escreveu sobre como o homem vê a si e à mulher no livro “Masculino/Feminina”. Ele se vê obscuramente e à mulher com clareza cada vez maior. Quando podem expor-se, questões pendentes que têm com as mulheres vêm à tona. Vivenciam-nas, trazendo elementos de suas emoções. São angústias, necessidades e desejos em relação a eles, muito claros.
Quando são instadas a colocar-se no lugar dos homens, segundo o médico, elas pouco demonstram saber, pois não têm idéia de como eles são. “Mais expostas, diretas e extrovertidas, as mulheres facilitam seu conhecimento, embora os homens não tenham disponibilidade para oferecer muito do que elas necessitam. Já as mulheres nada sabem a respeito do que o homem quer, precisa ou deseja, mas conservam interesse em saber, para poder atendê-los”, explica. Em sua afirmação, o médico contrariou séculos de dominação masculina marcados pela ordem emitida de um simples olhar ou palavra. E ainda é assim em alguns lugares. De qualquer forma, ele tem por objetivo favorecer o bem-estar de ambos. “Nos últimos anos os homens acreditaram que estariam atualizados caso sua sensibilização desenvolvesse o lado feminino.” Erraram. Tal atitude os enfraqueceu. Eles foram descartados, pois as mulheres continuam preferindo “energia masculina e segurança”.
O oposto também se verificou. Segundo o psiquiatra, há estudos feitos em todo o mundo que demonstram mulheres de perfis rígidos, intransponíveis, em cargos de chefia. “Elas acabaram incorporando o referencial masculino no trabalho.” Enquanto isso, os homens estão procurando o “masculino deles”, por meio de discussões, reflexões, vivências a respeito do que é ser homem hoje.
“Atualmente ele quer estar com mais disponibilidade afetiva, pois percebeu que ganha com isso. Abre-se assim a possibilidade de flexibilizar suas relações profissionais, num cenário muito melhor do que o ensinado.” Os homens queixam-se, também, de “imensas” distorções jurídicas “decabidas”, de proteção à mulher. Que o digam os descasados, vítimas de advogados e ex-esposas inescrupulosos. Em geral, esses homens reclamam de sequer terem a oportunidade de defender-se de acusações maldosas e inverídicas. Lamentam ter de comparecer a delegacias para romper, com muito sacrifício, a barreira que os separa da credibilidade irrefutável da Justiça em relação à mulher, cuja fragilidade hoje questionam.
Mas sua luta é incipiente. Eles ainda se ressentem da falta de companhia feminina. “Estatísticas comprovam que homens sozinhos têm mais doenças psicossomáticas e entre eles é alto o índice de suicídios.”
O amor é a saída
Luiz Cuschnir trabalhou o primeiro amor, nos grupos de ambos os sexos. Apresentou-o em congressos brasileiros, ibero-americano e mundial, com sucesso. “Eram encontros em que se discutiam todas as linhas terapêuticas existentes e, em Jerusalém, que simboliza o foco das grandes disputas, o primeiro amor surgiu como adequado para a resolução de conflitos.”
O objetivo é resgatar a fonte de amor nas pessoas; buscar sua capacidade de amar sem traumas. O médico acredita que o ser humano nasce puro e começa a “engasgar, a se interromper” ao longo da vida e das experiências. A partir de práticas desenvolvidas no primeiro amor, o indivíduo começa a recuperar-se e a amar novamente, aceitando a possibilidade do encontro com o outro de modo menos atritado.
“Homens relacionam-se com mulheres, às vezes, totalmente contaminados por situações que o atingiram ainda na adolescência, quando viveu o primeiro amor.” Se foi abandonado ou zombaram dele, arrastará as conseqüências deste fato até que seja compreendido. Segundo o médico, hoje já existe a consciência sobre a necessidade de integrar emoção e raciocínio, como acelerador de sua capacidade de inteligência. é como deverá ser o homem do século 21.
Para Cuschnir, eles “estão sem saída” e já perceberam a urgência em transformar “robotização” em “humanização”: “Sabem que o que conquistaram é facilmente reproduzível e, principalmente, pode ser executado por mulheres de forma muito mais adequada”.