A Filhinha do Papai

Kalunga Cotidiano – março/09

“Pais reprimidos quanto aos seus sentimentos mostram que o mundo masculino é indevassável”

A morte de 130 tecelãs norte-americanas em uma fábrica no ano de 1857 foi o “estopim” para a criação do Dia da Mulher, mas só 53 anos depois, em 1910, durante uma conferência na Dinamarca. Foram necessários mais 65 anos para que a data fosse oficializada na Organização das Nações Unidas (ONU). No caso do direito ao voto, até em países desenvolvidos da Europa, o da mulher só foi aprovado após a década de 50/60. Em outras palavras, não tem sido fácil as “revoluções” das representantes do sexo feminino na busca por seu espaço, sem falar, que mesmo em regiões onde já se deu a emancipação, a situação continua bastante precária. Para o psiquiatra e psicoterapeuta Luiz Cuschnir, autor de diversos livros, entre os quais “A Mulher e Seus Segredos”, apesar das dificuldades, as mulheres de hoje estão satisfeitas com suas conquistas. Aqui, ele fala sobre a influência dos pais na formação da mulher, infidelidade, sexualidade, e outras questões relacionadas ao universo feminino.

Kalunga: Quais as principais conquistas das mulheres nos últimos anos?

Cuschnir: Não dá para imaginar hoje, mulheres vivendo com a desvalorização de antigamente. A liberdade de ir e vir comprometida com regras e normas do que pode e não pode; de submissão, de camuflagens, que as denegriam em quaisquer movimentos que fizessem. Obrigações lhes eram impostas, no papel de mãe e de esposa. Do jeito que teriam que escolher e desenvolver a vida profissional, atividades físicas e tantas outras, que as colocavam em verdadeiras prisões, no “ter que fazer por que afinal é uma mulher”. Agora, isso é a questão diretamente relacionada às conquistas. Satisfação com a vida que têm, ou seja, é outra coisa.

Kalunga: Insatisfação, frustração e insegurança são frutos da formação delas?

Cuschnir: Cada elemento relacionado a não realização pessoal depende exclusivamente ao que individualmente a mulher espera realizar na própria vida. Se ela deseja alguma coisa e não vai atrás, fica com a sensação de incompleta. Algo dentro dela que não está sendo atingido, isto é, um fracasso. A mesma coisa que é imprescindível para uma, pode não fazer diferença para a outra. A insatisfação e a frustração andam em paralelo, na mesma direção. Já a insegurança espelha o medo que tem de não conseguir atender o que ela espera de si mesma. A influência da formação pessoal é grande, mas não é totalmente dependente de seus pais ou da família. Há interferências importantes do convívio social, dos ambientes que frequentou, das experiências de vida e acidentes de percurso, que podem deixar marcas difíceis de apagar. é uma somatória de tudo isso.

Kalunga: Mulheres que tiveram famílias desestruturadas, por exemplo, mães dominadoras, pais ausentes ou com problema com alcoolismo, tendem a ter menos sucesso na sua vida amorosa, pessoal e profissional?

Cuschnir: Todos esses vínculos afetivos são preponderantes para as escolhas que serão realizadas na vida. Na mesma família, um pode ser o exemplo de sucesso e o outro de fracasso. A identificação com um deles pode ser preponderante para oferecer um modelo do jeito de ser na vida. Uma família cindida pode ser um modelo de ter que seguir num casamento a todo custo. Pais ausentes oferecem modelos fracos em relação a atitudes na vida. O alcoolismo como doença é um fator que pode passar para as gerações seguintes. Tudo isso precisa ser positivado para não deixar mitos impregnados de insucesso na geração dos filhos.

Kalunga: De que maneira mães e pais contribuem para a “infelicidade” dos relacionamentos afetivos?

Cuschnir: Mães que reclamam claramente ou suspiram com jeito de infelizes perante as experiências de seus relacionamentos afetivos, vão de alguma forma ensinando que é dessa maneira resignada que se vive com o seu parceiro. Pais reprimidos quanto aos seus sentimentos mostram que o mundo masculino é indevassável e não compartilhável. Mostrar que há possibilidade de se atingir um estado de satisfação no relacionamento amoroso, indica para a filha como ela deve buscá-lo para viver a vida.

Kalunga: As mulheres se pautam nas referências maternas e paternas ao escolherem um parceiro?

Cuschnir: Sim, vão escolhendo os valores que devem buscar no companheiro que terão. Mas também podem distorcer essas escolhas, a partir de carências afetivas que aparecem quando não conseguem oportunidades de fazê-las. Vão para o que é apresentado e não pelo que é escolhido. Há também a fase em que são feitas essas escolhas. As mulheres mais maduras terão esse referencial materno/paterno diferente do que as que ainda não desenvolveram a percepção do que os pais são ou o que elas imaginam que eles são.

Kalunga: O que é ideal para os pais na educação de uma filha?

Cuschnir: O ideal é sempre difícil de atingir, pois cada família prepara diferentes mulheres para o mundo. Além disso, na própria estrutura familiar, diversos papéis são esperados de cada filha, umas em relação às outras. O importante é observar o que se espera desta filha? O que ela está representando na história desse grupo familiar? é preciso oferecer condições para ela aprender com o mundo como ele é, e ao mesmo tempo deixar o mais claro possível a identidade familiar à qual ela pertence. Isso dá, ao mesmo tempo, autonomia com segurança para o seu desenvolvimento como mulher.

Kalunga: Hoje, as mulheres têm assumido suas carências e aceitado seus limites?

Cuschnir: Assumir a carência e limites vai justamente de encontro com a desmistificação da onipotência mostrada na época das primeiras feministas. Como elas precisavam conquistar um espaço social de respeito, tiveram que deixar de lado o seu mundo afetivo. Discuto isso em um capítulo do meu mais recente livro “A Mulher e seus Segredos – Desvendando o mapa da alma feminina”. Deixar a alma livre, é permitir-se sentir, poder desejar amar e ser amada, perceber a falta que isso está fazendo na vida dela.

Kalunga: Mulheres muito ocupadas profissionalmente tendem a colecionar fracassos na vida afetiva e familiar?

Cuschnir: Colecionar fracassos não é privilegio das profissionalmente muito ocupadas – isso é um mito. Dificuldade em iniciar e manter o desenvolvimento afetivo sim, pode propiciar mais fracassos, pois há um tempo de investimento inicial que se não ocorrer, não estabelece raízes adequadas para o desenvolvimento de um vínculo afetivo. O vínculo familiar forte e bem-sucedido tem a ver mais com a competência relacional, isto é, como conseguir equilibrar os dois aspectos, profissional e familiar. Quando não se consegue usar os controles remotos e a boa utilização do tempo, as mulheres correm esse risco de fracasso. Por isso falo de competência relacional.

Kalunga: A propósito, como é possível equilibrar os papéis de profissional, mãe, mulher…?

Cuschnir: Treino, mágica, senso, percepção, educação e outros tantos segredos são necessários para que a mulher aprenda isso. Algumas têm esse dom, quase inato. Outras vão desenvolvendo conforme as situações aparecem. Cada fase da vida do casal, da família e da carreira, demanda dela a flexibilidade para se adequar a novas situações. Só para dar um exemplo: uma coisa é ser mãe de criança, outra de adolescente, de adulto, e outra é ser avó. E assim por diante em outras situações.

“Com certeza, a mulher de hoje está muito mais preparada para lidar com a sua sexualidade, suas necessidades, e com a maneira peculiar de viver o próprio sexo”

Kalunga: O que leva uma mulher a ser infiel? A infidelidade feminina ainda é um tabu?

Cuschnir: Sem dúvida, a infidelidade feminina ainda é um tabu; é vista como desvalorizadora, com um grande conteúdo de moralismo na história. Mas nesses 35 anos de carreira como psicoterapeuta, observei que a culpa que a mulher sente ultrapassa, e muito, a não permissão dela viver um amor fora do casamento. Mesmo em um ambiente tão protegido pelo sigilo como é uma psicoterapia, ela reluta em rever esse tema – tem muita vergonha de ter essa vivência. Não é só a sociedade que é mais permissiva para o homem; ele próprio lida com isso de maneira mais superficial.

Kalunga: Nos dias atuais, as mulheres têm conseguido “resolver” sua sexualidade?

Cuschnir: >Com certeza, a mulher de hoje está muito mais preparada para lidar com a sua sexualidade, suas necessidades, e com a maneira peculiar de viver o próprio sexo. Avalia melhor o que quer, quando e como quer ter a sua vida. Com o trabalho de Gender Group® (grupo de gênero masculino e feminino), que desenvolvo desde a década de 80, preparando a mulher para cada nova etapa da sociedade, com suas mudanças e transformações, a sexualidade é quase uma consequência. Esses grupos se expandiram no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; estou atendendo um número cada vez maior de mulheres e homens que querem desenvolver e atualizar suas posturas. Assim, vão resolver melhor várias áreas da esfera emocional que interferem no seu dia-a-dia.

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