Os Gêneros

Revista de psicologia Catharsis – lançamento da publicação “Homens sem Máscaras – Paixões e Segredos dos Homens” – novembro/dezembro de 2000

Conversamos com o Dr. Luiz Cuschnir que é médico, psiquiatra, supervisor e professor do serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (há 28 anos), coordenador do Gender Group® e do IDEN (Centro de Estudos da Identidade do Homem e da Mulher). Autor de uma tese inédita sobre o masculismo, que é o estudo sobre os conflitos emocionais do homem. Autor dos livros “O Masculino, Como o Homem se vê – Feminino, Como o Homem vê a Mulher”, “Homem, um Pedaço Adolescente – Adolescente, Pedaços de um Homem” e “J.L.Moreno – Autobiografia” onde foi organizador e editor.

Catharsis: Você estuda muito os relacionamentos humanos e trabalha com grupos só de homens ou só de mulheres. Por que o interesse específico em relacionamentos? Que respostas você espera encontrar nestes estudos?

Luiz Cuschnir: Esse interesse específico no relacionamento baseia-se no psicodrama que propõe basicamente todo um trabalho inter-relacional. No início da minha formação, antes de me formar em Medicina, comecei fazendo psicodrama. Depois quis ampliar e aprofundar, passando para um trabalho psicanalítico ortodoxo, tanto a nível pessoal quanto na forma de trabalhar com meus pacientes.

Ao longo do tempo percebi que a psicanálise tinha um enfoque muito voltado para a relação transferencial (do paciente com o terapeuta). Comecei então, a ter interesse em saber como a pessoa estava vivendo seus outros vínculos, identificando-me profissionalmente com o psicodrama, ou seja, criando cenas ou situações internas do paciente com outras pessoas e também, trazendo pessoas dos atuais convívios para dentro da sessão.

Nesse início da minha vida profissional trabalhei com adultos e adolescentes. Com os adolescentes era primordial trazer pai e mãe e eventualmente, outros membros da família ou do seu mundo. Isso me guiou para trabalhar mais com a questão inter- relacional e menos com o intrapsíquico. Nesse trabalho com os adolescentes começaram a surgir indagações como o que acontece com os rapazes ao se depararem com o pai e com a mãe. Ao estudar isso percebi que a mãe presente na sessão tinha uma configuração, intervindo de certa maneira na dinâmica. Quando não havia a mãe presente, mas apenas o pai, aparecia outra dinâmica.

Em outros trabalhos com homens adultos surgia eventualmente, uma dificuldade no relacionamento com o filho, como em expressar sentimentos deste pai, de dialogar, necessidade simultânea e conflituosa de se colocar e de se proteger, dúvidas em como fazer para conseguir expressar os afetos e emoções. A partir daí iniciou-se o trabalho com o grupo de gêneros, que grupos formados apenas por homens ou por mulheres.

Há mais de 10 anos, participei de um trabalho na Holanda, onde conheci através de vivência, a formatação de um Gender Group® (grupo de gênero).A proposta era a de saber o que acontece entre homens e o que acontece quando os homens encontram o mundo feminino. Mas na Holanda era um trabalho diferente, pois tinha um referencial apenas verbal e reunia grupos de homens da Dinamarca, Alemanha, Israel, Inglaterra e da própria Holanda.

Quando trouxe esse trabalho para o Brasil, criei uma formatação utilizando o psicodrama e o referencial brasileiro. Percebi então, como ambos vêem a relação homem-mulher e o quanto precisam encontrar o locus que condiz com a situação atual do masculino e do feminino. Existem muitas indagações, não se sabe ainda como complementar o outro gênero, mas quando se consegue um espaço de troca para compartilhar as angústias de vivências já ocorridas, das metas, os desejos que as pessoas tem de atingir relacionamentos melhores, mais saudáveis, mais profundos, mais desenvolvidos, começa-se então a ter respostas mais claras. O Gender Group® não é um curso que ensina o homem a ser homem e a mulher a ser mulher, mas um trabalho de desenvolvimento, que têm um caminho e um percurso prático, que atinge vários temas da vivência de cada um, com o objetivo de nessa troca poderem compartilhar experiências, tanto homens quanto mulheres. Para que possam estar se percebendo e possam também perceber como outros de seu gênero estão, quais as angústias, as necessidades. E a partir daí poderem aprender e desenvolver seu próprio jeito, lidarem e desenvolverem melhor o próprio potencial.

Principalmente na questão masculina, os homens têm muitos mitos: – não podem se abrir para outros homens; tem que mostrar uma aparência de que já sabem tudo; não podem mostrar suas dependências, sua sensibilidade, suas emoções. Mas podem mostrar muito da sua onipotência, da sua capacidade de ensinar, da condição de professor, de quem já sabe tudo sobre ele e tudo o que tem, o que fará e tudo que terá que fazer. Pode no máximo contar algumas histórias que muitas vezes não correspondem às próprias dúvidas. Em geral, disfarçam muito, tem muita vergonha do que não sabem ou temem.

O que se espera nesse trabalho é que os homens aos poucos criem um contexto de confiança e isso acaba acontecendo. É justamente o que abordo no livro do homem adolescente, que é a questão de que enquanto o adolescente é jovem, pode contar tudo no seu grupo de amigos, desde a vez em que não conseguiu uma ereção, ao medo que tem de ser traído, a angústia que sente de ter contraído uma doença venérea, enfim uma série de coisas. Quando entra na vida adulta como um homem duro, que as vezes não pode nem sorrir, tem que manter uma postura de muita seriedade, de sabedoria e acaba deixando toda sua vida afetiva de fora desse compartilhar com o social. Não podendo então, contar que não está mais conseguindo amar, sentir grandes emoções, que tem medo de perder a mulher ou que não consegue mulher nenhuma. No grupo criamos um contexto que vai aprofundando e os homens descobrem que não precisam mais ser “containers” (caixotes) e que podem utilizar todo aquele colorido que tinham na vivência da adolescência (a energia, as emoções fortes) para manterem-se vivos. Não precisam mais fazer um pacto com a morte, por exemplo, se matando de trabalhar, mas passando a fazer um pacto com a vida.

Catharsis: Quais os fatores mais estressantes e como eles interferem na libido das mulheres?

Luiz Cuschnir: A mulher sentia-se desvalorizada ao desempenhar apenas o papel doméstico que era pouco valorizado e não remunerado. Essa insatisfação fez com que ela buscasse um trabalho fora que a preenchesse e que fosse remunerado. Mas junto com isso passa a ter um acúmulo de funções, onde muitas vezes, continua desempenhando o papel de dona de casa, mãe e o novo papel profissional. Passada a euforia da nova conquista, percebe que está sobrecarregada, ocorrendo então o cansaço, a irritabilidade, a desmotivação, aumentando inclusive, a consciência das diferenças de salário entre homens e mulheres, da desvalorização das mulheres também no campo profissional (pois ocupam cargos iguais aos dos homens e recebem salários inferiores). Essa tensão emocional interfere na libido das mulheres.

A sanitarista Eleanora Meneghetti Oliveira, através de entrevistas, comprovou uma relação direta com a tensão gerada pelo trabalho e a libido, em seguida fez uma série de conjecturas para melhorar essa questão, através de um ambiente de trabalho bom, onde haja um relacionamento que inclua uma integração entre os colegas (existindo respeito, ajuda mútua, aprendizado, ensino, tendo-se um ambiente mais eficiente e tranquilo). Outras medidas anti-stress seriam fazer intervalos nos períodos de expediente, fazer exercícios físicos, lazer no final de semana, alimentar-se com calma.

Nós terapeutas, precisamos instalar na vida das pessoas essa questão de se ter uma melhor qualidade de vida também e não ficarmos apenas na qualidade intrapsíquica, mas na qualidade relacional e ambiental que as pessoas precisam ter.

Catharsis: A mulher que foi durante muito tempo dependente do homem do ponto de vista emocional e econômico, continua com esta mesma dependência ou ocorreram mudanças?

Luiz Cuschnir: Com certeza a dependência econômica diminuiu muito. A mulher ainda não se vê com tranqüilidade, dando um apoio econômico ao homem, tendo que compartilhar igualmente das despesas econômicas ou tendo que sustentar a casa. Os homens queixam-se do fato da mulher achar que é obrigação deles pagar viagens, restaurantes, cinemas. O homem vê a mulher desempregada de forma diferente de como a mulher vê o homem desempregado. Esta se sente incomodada e com dificuldade para aceitar tal situação.

A mulher tem desejo de ser suprida. Ser suprida economicamente é uma das formas e as vezes ela mistura o ser suprida afetivamente com o ser suprida economicamente. As próprias mulheres confirmam que optam por homens menos interessantes, mas que tenham uma condição econômica melhor. E os homens também acabam tendo essa posição em relação às mulheres, de se sentirem usados e de que serão valorizados se forem ricos.

De outra maneira a mulher depende emocionalmente do homem, pois se sente incomodada se não estiver acompanhada ou com uma relação estável. As mulheres se perdem, se irritam, apresentam distúrbios alimentares, emocionais e sentem muita falta de um companheiro fixo. Mas se compararmos os dois gêneros, a mulher consegue sair-se melhor que o homem.

Catharsis: Há alguma possibilidade de dizermos que o homem depende da mulher? Como e por que?

Luiz Cuschnir: Um dos aspectos importantes na relação do homem com a mulher é que o homem é mais dependente afetivamente da mulher. O homem se desorganiza com muito mais facilidade quando não tem uma mulher. Por outro lado a mulher tem facilidade para manter o convívio social e se rearrumar depois de uma separação, conseguindo desenvolver uma série de compromissos sem o homem, ficando muito mais independente.

Do ponto de vista mais profundo temos resultados que evidenciam claramente que o homem sozinho, separado, viúvo, descasado, solteiro é um fator de risco de suicídio muito maior que as mulheres na mesma situação. Outros estudos mostram que em relação a doenças psicossomáticas ocorre o mesmo fato, ela se desenvolve mais nos homens sozinhos e menos nas mulheres sozinhas. Elas adoecem menos.

Esses são alguns aspectos que indicam o quanto os homens têm uma necessidade afetiva da mulher que vai estruturar a vida dele, tanto do ponto de vista social, do convívio, do desenvolvimento da sua vida, quanto dos aspectos mais profundos e internos de sua personalidade.

Apresentei uma tese em 1998, na Faculdade de Medicina da USP que apresenta o termo masculismo que é equivalente ao feminismo, onde se fez um estudo sobre os conflitos emocionais do homem.

Catharsis: As mudanças econômicas afetam os relacionamentos? Por que?

Luiz Cuschnir: Por mais desenvolvida que esteja uma sociedade, há uma solicitação de grandes mudanças de atitudes, mais evolução, mais igualdades. Mesmo assim, quando isso passa a afetar economicamente as empresas, há uma inviabilidade para ocorrerem essas mesmas mudanças.

Atualmente os homens têm ficado mais em casa para a criação dos filhos, mas quando recebem uma oferta de trabalho, onde passarão a ganhar mais que a mulher, deixam logo o cargo doméstico e voltam ao mercado de trabalho. Isso mostra que toda essa transformação no homem, surge apenas em decorrência da situação sócio- econômica desfavorável ao homem. A ascensão da mulher ao mercado de trabalho mais qualificado, remunerado, especializado, faz com que o homem sinta-se menos poderoso e as mulheres passam a ocupar mais espaços. Devido ao salário mais baixo estas são mais contratadas, afetando diretamente a relação entre homens e mulheres. Cada vez mais, estas transformações invadem os espaços públicos e privados da sociedade.

Catharsis: Considerando o respeito como base dos relacionamentos, você diria que os casais se respeitam mais ou menos hoje em dia?

Luiz Cuschnir: Antigamente respeito era baseado em medo e pautado em normas de educação. Hoje em dia o respeito vem baseado num conhecimento maior do que é o ser humano, do que é o outro, que não é igual a si mesmo. Conhecendo-se e respeitando-se mais amplamente as necessidades do homem e da mulher, a tendência é que cada vez mais as pessoas possam perceber as individualidades e características próprias e as do outro. Só a partir daí saberão o que desejam de um relacionamento e o que dispõem para trocar.

Catharsis: é muito difícil ser um descasado(a), há alguma maneira de lidar melhor com esta perda?

Luiz Cuschnir: Tanto homens quanto mulheres, ao se depararem com essa situação de descasados, acabam sendo assolados por sentimentos muito conflitivos. Ao mesmo tempo uma sensação de liberdade, desejo de conquistar o mundo e por outro lado as dúvidas “Qual será meu caminho?”, “Meu futuro?”,” Onde eu vou parar?”.

Nos dias de hoje, uma pessoa descasada está muito mais apoiada socialmente, mas internamente ambos, homens e mulheres, sofrem a perda de um ideal, de uma meta primordial, que seria construir uma família, uma rede de sustentação contínua, confiável, de alguma forma estruturante, como uma delimitação de um caminho de vida. Essa perda causa uma sensação muito forte de desespero. As pessoas levam algum tempo para se recuperarem de um “descasamento”. Quanto mais longo um casamento, mais difícil a recuperação. O que dará uma melhor estruturação ao descasado será a estrutura da família de origem, ou da família que ele formou, por isso as mulheres que ficam com os filhos conseguem uma estruturação melhor. O ambiente profissional, o convívio social, a crença religiosa ou o envolvimento com atividades filantrópicas, também promovem uma estruturação para a pessoa descasada.

Hoje em dia, realizamos grupos de mulheres no serviço de psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. As psicólogas Marisa Micheloti e Aparecida de Cicco desenvolvem estudos a este respeito.

Catharsis: Pelo que você descobriu em seus estudos, a polêmica sobre a falência do casamento é um fato que está se consumando?

Luiz Cuschnir: O casamento é a semente da família, então não podemos acreditar que o casamento está falido, pois estaremos acreditando que a família estará sendo dispensável, quando na verdade ela exerce uma importância fundamental na vida do indivíduo. Os casamentos que estão falindo são aqueles voltados para um vínculo mais tradicional, onde as pessoas se apoderam e sentem-se donas umas das outras. São casamentos que funcionam com uma cobrança absurda de dedicação, onde cada um se sente mais importante que a individualidade do outro.

O que se fala muito é que a individualidade não é respeitada, mas a própria pessoa não conhece sua individualidade e como o outro vai conseguir respeitá-la.

O que resolve o casamento é o conhecimento do mundo de si mesmo, o conhecimento profundo das próprias limitações e não do outro.

Estar com o outro deve ser alguma coisa que fica além do contrato comercial ou social, mas que possa criar um campo energético, com um aspecto co-inconsciente, com respeito profundo pela sensibilidade do outro. Não tanto pelo que o outro fala, mas pelo que ele é, não pelo que o outro expressa, mas pelo que ele sente. Dessa forma existe uma possibilidade muito grande de um bom relacionamento.

Catharsis: O que é o Centro de Estudos da Identidade do Homem e da Mulher, o IDEN?

Luiz Cuschnir: O IDEN nasceu da realização de vários trabalhos e veio a partir dos dois livros de minha autoria: “O Masculino: Como o Homem se vê – Feminino como o Homem vê a Mulher”, “Homem um Pedaço Adolescente – Adolescente Pedaços de Homem”.

Foram vários grupos: na Europa, Canadá, USA, na América do Sul, Brasil, no consultório, no Hospital das Clínicas, nas empresas, enfim vários trabalhos relacionados a gêneros (a questão do ser homem e do ser mulher hoje). Toda essa quantidade de material que venho estudando, observando, desenvolvendo abordagens terapêuticas, culminou com a tese do masculismo a qual tece considerações sobre os conflitos emocionais em grupos masculinos.

A proposta do IDEN é desenvolver a identidade do homem e da mulher individualizadamente, separadamente, com dinâmicas próprias, com o intuito de não criar essa massificação de expressão, todos os seres tem direitos iguais. Na verdade, não é um centro de estudo de direitos sociais ou jurídicos, mas a idéia é de lidar com direitos emocionais. A nossa busca é de entender profundamente o funcionamento, o dinamismo, masculino e feminino e quando ocorrem as intersecções, verificar o que acontece e o quanto cada gênero está preparado para encontrar o outro. Então, o IDEN busca poder atuar nas universidades, nos consultórios, nas empresas, na sociedade como um todo. Hoje nas empresas, o IDEN vai desenvolver projetos de qualidade de vida profissional.

Catharsis: Por que na relação homem-mulher é tão difícil a conquista da intimidade?

Luiz Cuschnir: A intimidade está diretamente relacionada com o respeito. Muitas vezes as pessoas chegam a uma nova relação com feridas tão profundas, com mágoas de terem sido desrespeitadas, humilhadas desde a infância (contatos de abusos pelos pais), situações de dinâmica familiar conturbada e desrespeitosa. Encontram-se então, um adulto machucado e com muitas cicatrizes, as quais interferem profundamente no seu relacionamento atual.

Outro fator é a liberalização da sexualidade o que acaba se chocando com a intimidade e privacidade. Atualmente, se enaltece o número de relações sexuais, o marketing de um encontro amoroso cada vez mais fantasioso, paradisíaco, mais fantástico, se estimula a vivência “hollywodiana”, fazendo com que as pessoas se afastem de suas possibilidades reais de uma maneira mais simples, mais verdadeiro e profundo.

Integrando a privacidade, a intimidade, a sinceridade e o respeito, chegamos a uma situação de vinculação entre duas almas que se entregam profundamente.

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