Revista AOL por Renato Modernel – outubro/2005
“Vai lá no Luiz, que ele é especialista em homens”,
Diziam e ainda dizem, até hoje, quando algum bravo representante do sexo masculino, fragilizado ou confuso, precisa de ajuda. Mas isso não é bem verdade, ou é uma verdade relativa. Pois o psiquiatra e psicoterapeuta Luiz Cuschnir, um paulistano de 55 anos, autor de vários livros que tratam de comportamento e emoções, atende ambos os sexos em seu consultório no bairro do Paraíso – e tem inclusive longa experiência em terapia de casais.
Se Cuschnir ficou com essa fama de especialista na alma masculina, é porque foi um pioneiro, no Brasil, na atuação com os chamados Gender Groups, forma de psicoterapia de grupo que parte de uma divisão por sexos. Chegou a cunhar o termo masculismo, que nada tem a ver (ele sempre faz questão de frisar) com machismo, mas sim como uma contraparte do feminismo. Ou seja, um campo de estudos que busca desvendar os conflitos emocionais masculinos, no que eles podem ter de mais específico.
A partir de 1995, Cuschnir passou a formar grupos de homens para trabalhos terapêuticos no Hospital das Clínicas de São Paulo. Três anos depois, também grupos de mulheres. Porém, a essa altura, e muito por conta de sua tese acadêmica, focada nos homens, já tinha uma imagem firmada como um especialista no mundo masculino. O trabalho no HC permanece até hoje.
Nesta entrevista, Cuschnir explica de que modo certas situações dramáticas da vida – como, por exemplo, a dissolução de uma família – podem repercutir de modo tão contrastante nas partes envolvidas. É quase como se homens e mulheres, sentados juntos no mesmo cinema, vissem sempre filmes diferentes.
AOL: A dor de uma separação é diferente para a mulher e o homem?
Luiz Cuschnir: Sim. A separação, além da insegurança financeira, provoca na mulher uma dor que está relacionada à rejeição. Por mais que queira separar-se, quando isso acontece, ela fica com a sensação de ter sido rejeitada. Mesmo que o homem fosse violento ou a traísse, ela sente como se essas coisas se devessem ao fato de não ser tão boa como mulher.
AOL: E a dor masculina?
Luiz Cuschnir: A dor masculina tem mais a ver com solidão do que com rejeição. Em relação à mulher, o homem tem uma dependência emocional tão grande que às vezes se configura numa dependência prática. No primeiro momento da separação, ele fica sem saber o que fazer: “a casa está uma bagunça”. Mas bem rápido descobre que existe faxineira, lavanderia, comida congelada, supermercado, e que ele pode até fazer as compras por telefone. Hoje o homem não é mais dependente de uma mulher que sabe gerenciar a casa. Isso ele consegue resolver rápido.
AOL: E o que ele não resolve rápido?
Luiz Cuschnir: A perda de uma relação afetiva na qual ele investiu, e acreditava que ia dar certo. Ele sente que perdeu sua capacidade de lidar com o amor. Apesar disso, ao contrário da mulher, a dor masculina não é tão ampla. Na hora da separação, o homem perde o seu projeto, não a sua identidade. A solidão vem do fato de que ele já não tem mais o seu entorno, aquele espaço privilegiado de proteção afetiva. O homem fica sem pele. O vento o machuca.
AOL: E quanto aos filhos?
Luiz Cuschnir: Quando há família, para o homem, a separação tem um poder destrutivo triplicado. É muito duro, para ele, deixar de ver o filho todo dia, ouvir o barulho dele, escutar suas solicitações. Muitas vezes essas solicitações passam a ser apenas econômicas. A grande queixa do homem, aliás, é a de que ele “vira um banco”. Essa perda do ambiente doméstico, para o homem, é um verdadeiro tsunami, um Katrina (referência ao furacão que devastou o sul dos Estados Unidos em setembro deste ano). É difícil, para ele, reconstruir sua vida, elaborar tudo isso. É como se o homem precisasse negar a nova realidade. Acaba por ter de se congelar. Diz para si próprio: “Se não dá para encontrar meu filho, se ele não quer me ver, paciência. Vou respeitar a vontade dele, não vou insistir. A partir de agora não tenho filho”. Mas essa é uma fala superficial. Para se proteger da dor, o homem cria uma pele artificial, uma pele falsa.
AOL: E a mulher, como se posiciona dentro dessa situação?
Luiz Cuschnir: Ela encara o ex-marido como um pai desnaturado, alguém que traiu uma causa, ou seja, a família. E, por acreditar nisso, vai passar essa idéia ao filho. Ela transmite algo assim: “Olha, filho, a gente não pode mesmo contar com seu pai, ele está trabalhando, teve que viajar”. Ou então assim: “Se você não quer mesmo ver seu pai, ou sair para jantar com ele, não precisa. Deixa que eu falo com seu pai. Ele vai entender que você não pode hoje”. Essa idéia é incutida no filho, que começa a modificar sua relação com o pai. Costumo atender jovens que, na primeira sessão, dizem o seguinte: “Para mim, meu pai já morreu”. Porém, no decorrer da terapia, sem muito esforço de minha parte, só com algumas perguntas, eles próprios começam a fazer um movimento de liberação, de aproximação ao pai.
AOL: Para o pai, é difícil sair de sua suposta indiferença, ou seja, retirar essa tal pele falsa?
Luiz Cuschnir: Na medida em que o homem vai retirando essa pele falsa, sofre ataques. Digamos que ele vá procurar o filho: “Olha, eu queria conversar com você. Vamos almoçar juntos”. E o filho: “Pai, hoje não dá, estou estudando”. O filho já internalizou, junto com uma mágoa profunda, essa nova forma de relação com o pai distante. E o pai, de sua parte, no momento em que não é bem-sucedido na reaproximação, volta a querer ter aquela pele falsa.
AOL: Esse artifício é assim tão recorrente?
Luiz Cuschnir: Num primeiro momento, a separação da família é muito dura para o homem. Por isso ele usa certos artifícios como esse, a pele falsa, em relação aos filhos. Para não ficar destruído emocionalmente. Ao não conseguir recuperar a família, as outras relações são claramente deficitárias. Esse homem pode até se envolver com outras mulheres, amar de paixão, mas lá no fundo permanece uma marca, uma dor, um timbre. Estou falando de alguma coisa profunda. É uma lembrança do tempo em que a família estava junta e ele tinha acesso ilimitado aos filhos.
“No caso do homem, a traição destrói a auto-estima”
AOL: Tem-se a impressão de que, para a mulher, tomar a iniciativa em relação ao homem ainda não é algo natural e que, no fim das contas, as coisas ainda ocorrem à moda antiga.
Luiz Cuschnir: Sim, à moda antiga. A mulher se preocupa em avaliar bem o homem que tem em vista. E, para casar, prefere aquele que é mais bom menino, inteligente, mas com um vislumbre de boa capacidade profissional. Enfim, quer um vencedor, mas um vencedor que não seja promíscuo nem garanhão.
AOL: Aquela história de relação aberta ficou enguiçada lá nos anos 60?
Luiz Cuschnir: Sim, como algo meio hippie. Na verdade, os relacionamentos não agüentam. Não é uma questão da mulher ou do homem. Ainda existe uma máxima: o homem não agüenta ser corno. Ele fica profundamente machucado. O vaso se quebra e ele não consegue consertá-lo mais.
AOL: E a mulher conserta o vaso?
Luiz Cuschnir: Ela consegue colar. Embora não seja mais uma “Amélia”, e em geral saiba do que acontece, ela consegue relevar e lidar com a situação de modo mais maduro. Ela sabe, no fundo, que uma relação pode sofrer rachaduras e ser recomposta lá na frente. No caso do homem, a traição destrói a sua auto-estima.
AOL: Porém ele já não dá um tiro na mulher, não mata.
Luiz Cuschnir: Tem vontade, mas não mata. A gente percebe que o homem mais jovem lida com isso com mais facilidade. No início da relação, ele já sabe que a mulher experimentou outras relações, tem a lembrança de outros homens, pode até estar vinculada a algum deles. Antes, para o homem, isso era insuportável.
AOL: Ou seja, Nélson Rodrigues já não se aplica tanto aos tempos atuais.
Luiz Cuschnir: Não, ele fica ridículo. O homem machista, como a gente costumava chamar, hoje é ridicularizado. Por outro lado, a mulher conserva traços machistas, embora negue. Ainda almeja um homem que se dedique a ela e que a tenha como prioridade. A mulher quer um cavalheiro que cuide dela e a defenda das agruras do mundo – o que não é errado. O homem, aliás, também deseja isso. Mas já tem claro, para si próprio, que a mulher não é a única prioridade em sua vida.
AOL: Por sua experiência como terapeuta, dá para identificar claramente uma semelhança no modo de sentir dos homens, em relação às mulheres?
Luiz Cuschnir: A dor, nos homens, é muito profunda e muito semelhante. Antes, quando eu começava a falar de como o homem sofre, ou como ele sente, a mulher se sentia cobrada, atacada. Em 1990, em um evento do Teatro Ruth Escobar, várias mulheres da platéia tiveram reações fortíssimas. Em 1992, em um simpósio em Toronto, falei sobre movimentos de homens que perdiam seus filhos e eram explorados pelas mulheres. No dia seguinte, os jornais me arrasaram. Falavam “desse brasileiro que quer colocar os homens na posição de vítimas”. O movimento feminista naquela época era poderoso no Canadá, mais até que nos Estados Unidos.
AOL: O feminismo ficou para trás?
Luiz Cuschnir: Vivemos outro momento. A mulher já agüenta que o homem fale da suas dores e dos seus dramas. Ela própria começa a reconhecer que está com conflitos muito sérios, no que diz respeito ao gênero. A mulher não está tão segura nem tão pronta como imaginava. Ou melhor, como todos nós imaginávamos.
“A mulher ainda entende muito pouco o homem”
AOL: Como você compararia os efeitos íntimos de uma separação no homem e na mulher?
Luiz Cuschnir: Na mulher, eu diria que a separação tem um efeito mais amplo. É como uma septicemia, uma infecção generalizada que atinge todo o seu ser e pode até mesmo aniquilá-la. Porém, se conseguir superar o problema, a mulher fica totalmente curada, sem seqüelas. Já com o homem, é diferente. Comparo a separação, nele, a um infarto do miocárdio. O problema é localizado no coração, símbolo de sua capacidade. Ao sofrer um infarto, o homem pode manter outras funções funcionando. Porém, na área afetiva, ficará com limitações. Não será mais a mesma coisa.
AOL: Como essa diferença se traduz numa situação real?
Luiz Cuschnir: Existe um diálogo muito freqüente entre um homem e uma mulher que se separaram. O homem fala de sua dor, e ela responde: “Ah, sim, eu sei o que é isso, também senti como é difícil a separação”. Mas o fato é que ela ficou junto dos filhos, permaneceu no ninho. E mesmo mais tarde, quando os filhos saem de casa, eles vão sempre visitá-la. Quer dizer, conservam a mãe como referência. Isso já não acontece com o pai. Ele não permanece como referência. Por isso, ao ouvir as observações da ex-mulher, o homem pensa assim: “Ela está falando de uma experiência muito diferente da minha. Meus filhos não moram comigo”. De fato, é difícil para a mulher entender que o homem sofre mais que ela, que permaneceu no ninho.
AOL: Essa teia de relações familiares vem se modificando ao longo dos últimos anos?
Luiz Cuschnir: Quando comecei a trabalhar como terapeuta, percebi que, para o pai se entender com o filho, era necessária a intervenção da mãe. A mulher era a tradutora do diálogo entre dois homens. Era encarregada de explicar o que cada um deles queria do outro. Isso acontecia em casa e se reproduzia aqui, na sessão. Hoje isso mudou. O homem aprendeu a lidar diretamente com seu filho ou sua filha.
AOL: Ao tornar-se desnecessária como intérprete, a mulher não perde poder?
Luiz Cuschnir: Mas ganha por outro lado. Na medida em que a mulher se livrou desse encargo, pôde conquistar outros espaços fora da família. Porque na verdade aquele papel de intérprete familiar era um papel de intérprete do mundo. A mulher, que sabe lidar melhor com a emoção, aplicou esse atributo na área profissional. Teve chance de se comunicar mais, de se expor mais, de ousar mais. Passou a ser reconhecida dentro de um padrão de inteligência e produção. Hoje temos um número maior de mulheres que, além do papel de provedoras da casa, são realizadas profissionalmente e atingiram um nível de carreira muito mais elevado do que o do marido. Isso dói no homem.
AOL: Por quê?
Luiz Cuschnir: Porque ele entra em contato com o seu fracasso. Para o homem, existe uma cobrança social. Se ele der certo na profissão, é considerado mais masculino. Aquele que consegue conciliar a vida profissional e a vida familiar é um vencedor.
AOL: Quer dizer, não basta ser um ótimo profissional, é preciso também ser um ótimo pai.
Luiz Cuschnir: Sem dúvida. O papel de pai é o que mais se desenvolveu dentro do terreno da masculinidade. Antes o filho olhava o pai como um transeunte, um cometa. Via-o apenas entrando e saindo de casa. A possibilidade que o filho tinha de lidar com esse pai, de acompanhá-lo, era mínima. Isso mudou. Antes o homem nem sabia direito em que ano escolar seu filho estava. Hoje ele chega em casa e pergunta como foi a aula, o que o filho está estudando. Vai até a escola e fica sabendo como o filho está na classe e como vem se saindo em cada matéria. Quer dizer, o filho não é mais educado pela mãe. Ele tem a influência masculina também.
AOL: E no campo das emoções, haveria também um movimento de equiparação entre o homem e a mulher?
Luiz Cuschnir: Bem, o homem e a mulher continuam sendo muito diferentes entre si. O homem reserva o que é daqui (o que é falado na terapia) para cá (para o consultório). Não costuma expor isso lá fora. Pode-se dizer que o homem guarda as emoções dentro dele com muito mais facilidade e precisão do que a mulher. Ela as projeta no plano social. Essa história de que o homem agora pode chorar não corresponde muito à realidade. Ele pode se emocionar com uma cena, uma lembrança, sem dúvida, mas não precisa de um choro convulsivo, como às vezes acontece com a mulher. Ela ainda entende muito pouco o homem. Muito pouco. Ainda fica presa em preconceitos.
AOL: Que tipo de preconceitos?
Luiz Cuschnir: A mulher ainda não se sente confortável com um homem que não trabalhe ou ganhe menos que ela. Não se sente bem com um homem que não a corteja, não a seduz. E diz se sentir livre para procurar um homem para uma ter uma relação sexual, mas na verdade prefere ser procurada. Não só no plano sexual, mas também no social e no profissional. A mulher, para se sentir bem, precisa ser escolhida.