Bruna Alves
Do VivaBem, em São Paulo
20/11/2020 04h00
Resumo da notícia
- O poliamor baseia-se numa relação amorosa entre mais de duas pessoas. É mais uma das alternativas ao estilo de vida monogâmico
- O consenso é um dos pilares da relação. Os integrantes não podem ter relacionamentos à parte sem o consentimento de todos
- Os relacionamentos podem ser formados por três, quatro, cinco pessoas. Não há uma regra. Cada arranjo é único
- Os poliamoristas sofrem muito preconceito, inclusive da própria família. A maioria não se expõe publicamente
“Em 2009, eu me apaixonei por uma menina, mas não deixei de gostar do Ton*. Falei para ele que queria viver essa paixão, mas não queria deixá-lo. Foi difícil no começo, porque não é fácil você desconstruir a forma que vive para viver a de outra pessoa. Ele começou a pesquisar a respeito e a gente viu que outras pessoas também viviam assim. Eu tive meu relacionamento com ela e continuei com ele. Foram duas relações paralelas”. O relato é de Liu*, 38, e foi assim que ela e Ton, 40, conheceram o poliamor.
O relacionamento com a menina durou algum tempo, mas acabou chegando ao fim. O casal, porém, continuou em relações poliamorosas e, atualmente, estão namorando outra mulher, e todos mantêm relações afetivas e sexuais. O filho de 16 anos do casal sabe da relação e todos agem normalmente, como em qualquer namoro monogâmico. Ton e Liu, inclusive, têm um podcast só para falar de poliamor.
“A gente faz programas familiares, ela vem aqui em casa e nós vamos à casa dela, então realmente é uma construção, não é uma relação superficial. Existe a vontade de morar todo mundo junto e termos mais um filho”, diz Liu.
Você pode estar se perguntando se é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Segundo especialistas, a resposta é sim. “Acompanho há inúmeras décadas tantos homens quanto mulheres que me apresentam amores nada passageiros nem mesmo superficiais, rápidos como uma paixão. Eu acredito plenamente que é sim possível viver amores concomitantes”, diz Luiz Cuschnir, coordenador do Grupo de Gêneros do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP (Universidade de São Paulo).
E há quem diga que esse tipo de relação constitui a essência do ser humano. “É uma coisa que tem bases naturais. Inclusive, cada vez mais, a ciência tem mostrado que pessoas absolutamente heterossexuais e absolutamente homossexuais são raríssimas. Então, a gente vive num grande espectro de bissexualidade potencial. E nós todos somos mais ou menos abertos ou predispostos a aceitar níveis diferentes de complexidade e intensidade das relações”, afirma Cláudio Paixão Anastácio de Paula, doutor em psicologia social pela USP e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
O que a ciência diz
“Ao longo da história na humanidade, as pessoas sempre tiveram sexualidade, atração sexual e a capacidade de criar vínculos por outras. O poliamor é o reconhecimento, a constatação, hoje, de uma realidade que sempre existiu”, diz o professor da UFMG. Não há muitos estudos sobre o tema, mas nos mamíferos a monogamia é rara: apenas 3% a 10% deles formam laços para toda a vida. E mesmo entre estes, estudos feitos com DNA mostram que esses laços não são sinônimo de monogamia sexual.
“Não acho que sejamos um animal monogâmico”, disse Pepper Schwartz, professora de sociologia da Universidade de Washington em Seattle, ao site LiveScience. “Um animal realmente monogâmico é um ganso —que nunca mais se acasala, mesmo que seu parceiro seja morto.” Os chimpanzés, por exemplo, que têm um mapa genético 98% igual ao do humano, acasalam-se livremente e mostram um alto grau de competição entre machos. Os testes de DNA demonstram que boa parte dos filhotes desses animais é concebida por machos de comunidades alheias. A discordância genética entre pais sociais e genéticos chega a mais de 60%, em alguns casos. A questão, no caso dos humanos, é que somos racionais e, logo, influenciados por sentimentos, e não apenas pela reprodução. Isso é mostrado até em quem se define como poliamoroso. Um estudo de 2017, por exemplo, analisou 3.530 poliamoristas e mostrou que mesmo em relacionamentos poliamorosos é possível que haja o parceiro principal da relação e o parceiro “secundário”.
Na pesquisa, a maioria dos entrevistados disse que ficava mais tempo com o parceiro principal, em média oito anos e quatro meses, com quem dividiam uma casa. Já os namoros à parte duravam cerca de dois anos e quatro meses. O estudo avaliou que, embora os parceiros principais da relação estejam satisfeitos um com o outro, eles procuram outros relacionamentos, o que inviabiliza a ideia de que o poliamor só ocorre quando o casamento ou namoro monogâmico não está dando certo. Ou seja, os parceiros vêm para somar, não para ajudar uma relação falida.
Poliamor é uma das inúmeras formas de amar
O termo começou a circular de forma muito restrita, nos Estados Unidos, na década de 1990, quando as buscas pessoais passaram a ser mais importantes que pertencer a instituições religiosas tradicionais, que só aceitavam relações monogâmicas, isto é, com apenas duas pessoas.
A prática se baseia em uma relação amorosa entre mais de duas pessoas, não implicando apenas no relacionamento sexual, embora ele aconteça na maioria das vezes. “Há relacionamentos que se restringem a um convívio muito intenso sem a conotação sexual. Outros implicam em uma vida sexual que pode ou não ser compartilhada diretamente entre todos ou terem somente uma configuração hetero ou homossexual”, explica Cuschnir. Há muitas variações na construção da relação, que podem ser compostas por três, quatro, cinco pessoas, portanto, não existe regra nesse sentido.
Poliamor é a liberdade de amar, mas embora seja um modelo mais “aberto” de relacionamento, como em qualquer outro, também existem restrições. Os poliamoristas, por exemplo, não podem ter uma relação a parte sem o consentimento de todos, aliás, esse é um dos pilares que sustenta esse modelo: o consenso.
Para João Cavalcanti, antropólogo pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) e estudioso do assunto, o poliamor é uma das alternativas ao modo de vida monogâmico. “É uma maneira diferente de encarar os relacionamentos, não é uma evolução, mas sim uma outra opção”, diz.
Por outro lado, como qualquer pessoa, eles também enfrentam dificuldades, solidão, brigas, ciúmes, e uma boa dose de preconceito. Por isso, os poliamoristas, na maioria das vezes, não se expõem socialmente.
Vale ressaltar que o poliamor não se trata apenas de um desejo ou uma necessidade que pode ser saciada e até descartada posteriormente. Ele representa a liberdade de construir uma própria configuração de amor, e foi isso que a empresária Bruna Gimenez, 35, fez.
“Eu era casada com o meu marido há 18 anos e tenho dois filhos adolescentes, mas sempre soube que gostava de mulher, que eu era bissexual, e foi quando eu conheci a minha esposa, no Facebook, por acaso”. Como ela continuou gostando do marido, os três começaram uma relação poliamorista e estão casados há um ano. “A minha família aceita bem, mas a sociedade vê como uma suruba”, lamenta a empresária.
Os poliamoristas lidam, diariamente, com essa multiplicidade. “O poliamor é um só, mas as configurações variam”, diz Cavalcanti. Em um trisal, por exemplo, formado por duas mulheres e um homem, o homem pode ter relações sexuais com as duas, mas elas não necessariamente precisam ter entre si, ou vice-versa.
Também há relações compostas por homens, sendo que um deles só se relaciona sexualmente com dois ou apenas com um, mas todos mantêm uma relação amorosa e eles se identificam como quadrisal, portanto são poliamoristas, porque se reconhecem como família.
Cada arranjo é único. Como dito anteriormente, trata-se de um relacionamento no qual não existe regras de formação, apenas de respeito, consentimento e convívio social. “O poliamor é um passo além. Hoje, o que a gente pode observar é que talvez essas novidades sejam uma alternativa para as pessoas enriquecerem suas vidas amorosas”, reforça o professor da UFMG.
*As identidades dos entrevistados foram preservadas
Fontes: Luiz Cuschnir, coordenador do Grupo de Gêneros do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo); Cláudio Paixão Anastácio de Paula, doutor em psicologia social pela USP e professor da Escola de Ciência da Informação da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais); João Cavalcanti, antropólogo pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco); Alexander Bez, psicólogo, especialista em relacionamentos pela UM (Universidade de Miami).